por Juarez Guimarães*
Na avaliação dos efeitos da crise econômica internacional sobre a conjuntura brasileira, deveriam ser evitados dois erros que significam uma regressão em relação à inteligência nacional-desenvolvimentista e às conquistas do debate sobre a relação entre dependência e desenvolvimento do país. O acúmulo dessas tradições já nos ensinou que a economia internacional se relaciona com o país mediada pelo Estado nacional, seu grau de soberania, suas posições de força acumuladas e a vontade política que o governa.
O primeiro erro é a replicação simétrica – é inerente aos pensamentos liberais e parece dominar a cobertura hoje dos órgãos da mídia empresarial. Por ela, a economia brasileira acompanha simetricamente ou, no mínimo, não tem espaço para contrariar as linhas de força da dinâmica capitalista internacional.
O segundo campo de erro é a defesa de uma autarquia ou descolamento da economia brasileira em relação à mesma dinâmica. Por esse método de análise, seria possível pensar o desenvolvimento do país a partir de uma dinâmica puramente endógena ou, pelo menos, basicamente endógena, isto é, uma dinâmica que pudesse anular ou reduzir a uma variável de pequena importância a influência do capitalismo internacional.
Evitando esses dois erros, seria possível descortinar um campo realista de previsões centrado nas resultantes prováveis da ação do Estado brasileiro.
Ora, é fato que o país avançou de modo qualitativo na construção de sua soberania nos últimos anos: as reservas internacionais em torno de US$ 200 bilhões, a condição de credor se considerarmos o agregado da dívida externa líquida dos setores público e privado, a desdolarização da dívida pública interna, a diversificação dos mercados exportadores. As posições de força acumuladas do Estado na economia também foram significativamente ampliadas no último período. A dívida líquida do setor público caiu de 52,4% do PIB, em 2003, para 36% em 2008, houve uma fortíssima alavancagem das funções creditícias dos bancos públicos (com resultados muito visíveis no mercado imobiliário e no setor agrícola), um exponenciamento da carteira de crédito do BNDES (o que permite um patamar importante de investimentos na crise), além de uma expansão histórica dos investimentos da Petrobras (inclusive já mirando a exploração das novas jazidas do pré-sal). Por fim, domina largamente no governo, com a notável exceção da direção do Banco Central, uma vontade chamada pelo ministro Guido Mantega de sociodesenvolvimentista e o governo Lula conta hoje com uma inédita e enraizada popularidade, coesão e uma ampla base parlamentar de apoio.
Há também uma dimensão importante de tempo: a crise pegou a economia brasileira em meio a uma taxa forte de crescimento, baseada prioritariamente na expansão do mercado interno. Em 2008, ano da explosão da crise internacional, de acordo com os dados do IBGE o Brasil teve um crescimento de 5,1% do PIB, apenas superado pela China, cinco vezes maior que o dos EUA ou da União Europeia, enquanto o Japão registrou uma recessão de 0,7%. A forte retração do quarto trimestre de 2008, de 3,6% do PIB, tem de realizar seu efeito desorganizador sobre essa memória imediata de um vigoroso ciclo de expansão.
Embora com um grau significativo de subestimação, devido às incertezas do cenário internacional, o governo se moveu em várias frentes nos meses finais de 2008 para bloquear a crise que se instaurou no mercado de crédito internacional e na expectativa dos agentes econômicos privados. O Banco Central brasileiro cometeu o grande erro de marchar na direção oposta à de todos os BCs dos Estados desenvolvidos do mundo ao manter, a princípio, os juros em um patamar altíssimo, focando ainda insensatamente a inflação. Só começou a rever seu erro, de modo parcial e tardio, em janeiro deste ano, no quarto mês de aguda desaceleração, ao aprovar dois cortes seguidos na taxa Selic. Ao fazê-lo, certamente impulsionou o impacto da crise, que tinha no crédito seu veio principal de contágio.
O grau de autonomia, as posições de força e a vontade política legitimada do governo Lula dispõem ainda de um amplíssimo campo de iniciativas. O “muro ideológico” do neoliberalismo veio abaixo, há uma nova onda de keynesianismo no capitalismo central e mesmo aqui grandes capitalistas e as cabeças da oposição pedem mais investimento do Estado e menor taxa de juros. O PAC continua sendo fundamental para incidir sobre os gargalos históricos da infraestrutura, da energia e do saneamento. Sua execução tem um forte efeito anticíclico sobre as ameaças de recessão. Mas ele é, como o próprio nome indica, um programa de aceleração do crescimento, e não um programa de superação da crise. Se antes era possível conviver com a postura conservadora do BC, agora não há mais esse espaço. A economia obtida com os cortes na taxa Selic (são R$ 8 bilhões a cada ponto de queda) deve propiciar a expansão dos investimentos e das políticas sociais. Por outro lado, há sentido em manter, nesse quadro, um superávit primário de 3,8%? No universo incerto das exportações, o mercado interno tem de crescer a uma velocidade bem maior do que a queda provável das vendas ao exterior. E, sobretudo, há que se defender os direitos e o processo, conjunturalmente abortado, de criação de empregos formais.
Enfim, trata-se de apoiar e aprofundar a dinâmica da revolução democrática em curso frente às pressões da crise internacional provocada pelo neoliberalismo.
A estratégia do transformismo
As eleições de 2010 ocorrerão muito possivelmente em um cenário de forte popularidade do governo Lula e da liderança pública do presidente. Esse fato de enorme transcendência é revelador do potencial da revolução democrática que está no centro da conjuntura política do país. Hoje, enquanto o governo Lula desfruta de uma opinião favorável (ótimo e bom) maior do que 70%, a confiança no presidente ultrapassa os 80%. Isolados em um porcentual de um dígito estão os que consideram o governo Lula ruim ou péssimo. É um novo patamar de popularidade, muito acima daquele conquistado ao final do primeiro mandato (pouco mais de 40% de ótimo ou bom).
Esse patamar de popularidade se diferencia de um otimismo expectante de início de governo, revela avaliações provadas de um governo no segundo ano do segundo mandato, já incorpora um certo grau de estabilização. E certamente não é um fenômeno epidérmico: expressa o movimento de uma base social, um forte deslocamento para cima dos setores mais pauperizados, que formam a base ampla do eleitorado brasileiro. Traduz, de fato, um grau importante de universalização na sociedade brasileira da liderança e do governo Lula.
Três consequências políticas podem ser extraídas dessa análise. Se o governo Lula for razoavelmente bem-sucedido no enfrentamento da crise, a popularidade de seu governo se cristalizará. Nesse quadro, a estratégia que restaria à candidatura da oposição, hoje mais provavelmente José Serra, seria navegar nas águas do transformismo, apropriando-se do universalismo da aprovação do governo Lula em uma fórmula neutralizante de um futuro pós-Lula, apagando ao máximo o sentido que lhe será inevitavelmente atribuído de ser, em boa medida, uma retomada das perspectivas, em uma angulação menos neoliberal, dos governos FHC.
O transformismo teorizado por Gramsci no sentido macro-histórico para conceituar a passagem da Itália para a modernidade capitalista sem revolução burguesa clássica é uma estratégia política pragmática que busca reduzir o potencial transformador de uma contradição histórica e acomodá-la em uma fórmula neutralizante por meio do arranjo político conduzido por cima. No caso brasileiro atual, a utilização desse conceito visa denunciar uma estratégia que quer eternizar uma democracia sem fundamentos republicanos, isto é, sem universalização da cidadania, neutralizando a potência transformadora da soberania popular. Para isso, é necessário desativar a cidadania ativa, ou seja, paralisar o potencial de uma revolução democrática.
É certo que o PSDB, partido líder da oposição, passa por uma crise de identidade e programática em função da deslegitimação das vertentes liberais apologéticas do mercado no qual, a maior parte do tempo, se formou e se desenvolveu. Mas seria incorreto desconhecer que há nesse partido inserção institucional – o governo de dois estados centrais do país, maior poder econômico, de mídia e candidaturas com potencial de expansão. Há certamente, em seu interior, inteligências estratégicas, operando por caminhos diferentes, que podem se combinar no cenário de 2010.
Há, em primeiro lugar, a candidatura mais provável de José Serra. A operação transformista dessa candidatura desfruta de certa legitimidade: Serra é, na verdade, um liberal-desenvolvimentista, isto é, um desenvolvimentista de origem que migrou para o liberalismo sob a liderança política de FHC e disputou publicamente com os neoliberais mais radicais do governo FHC, como Gustavo Franco e Pedro Malan.
Essa condição liberal-desenvolvimentista, como seu grupo se autodenomina, não deixa de ser uma identidade ambígua. Historicamente o nacional desenvolvimentismo foi antagonístico às tradições liberais e formou-se na defesa de um papel estratégico do Estado. Serra é hoje, antes de tudo, um liberal, isto é, alguém que nos anos 80 e 90 navegou nas águas da crítica ao Estado, como está formulado no manifesto de fundação do PSDB, que escreveu junto com FHC. O desenvolvimentismo aí comparece como adjetivo. Assim, Serra nunca se opôs à privatização, antes prosseguiu-a; sua ação de governo está muito longe do espírito reformista, trabalhista e progressista da tradição nacional-desenvolvimentista. Mas é possível que a derrota de legitimidade dos neoliberais com a crise facilite o curso de sua identidade ambígua, refletindo a virada internacional do campo liberal para o keynesianismo.
Em uma disputa nacional, Serra provavelmente maximizará as componentes desenvolvimentistas de seu liberalismo, buscando neutralizar a popularidade, ou se confundir com ela, daquilo que chamamos, na esteira de Guido Mantega, de sociodesenvolvimentismo. Sua passagem pelo Ministério da Saúde também lhe confere certa legitimidade com as políticas sociais. Se conseguir deslocar partidos da base de sustentação do governo Lula, como já fez em São Paulo, poderá diminuir ainda mais o impacto da acusação de que interromperá suas conquistas. Certamente não será marginal em sua campanha ao tema ecológico, com a ajuda da liderança pública de Gabeira.
Suas dificuldades residem na nacionalização de seu nome, em particular no Nordeste, e no desafio de, ao mesmo tempo, derrotar as pretensões de Aécio Neves e ter seu pleno apoio. Sua principal vulnerabilidade, o fato de não ter como se desvincular da herança de FHC sem pôr em risco sua credibilidade e, ao mesmo tempo, não poder se apresentar publicamente como vinculado a ela. Hoje, a candidatura de Aécio parece menos provável no PSDB, bem como improvável sua eventual transferência para outro partido. Mas, se Aécio não parece ter hoje força para vencer, tem certamente o poder de levar à derrota ou de influir decisivamente nas chances de vitória. E seus movimentos políticos, portanto, estão longe de ser irrelevantes para o resultado da disputa. Um caminho para vencer
Nas condições atuais, é razoável afirmar que num padrão de sete chaves – quase certa, muito provável, provável, incerta, pouco provável, improvável, quase nula – a vitória de uma candidatura que expresse a continuidade e o aprofundamento do governo Lula é apenas provável. Isso significa dizer que há riscos não desprezíveis de vir a ser derrotada em 2010. Para passar de uma vitória apenas provável para a condição de uma vitória quase certa e chegar às vésperas das eleições com uma possibilidade de vitória quase certa, é necessário todo um processo de construção política que esclareça e aprofunde o sentido da revolução democrática e, ao mesmo tempo, feche os espaços para o transformismo da oposição liberal-conservadora.
Em primeiro lugar, o transformismo tem de operar em uma atmosfera de baixa mobilização social, pois ele é exatamente essa intenção de paralisar ou pôr em suspensão a pressão democrática que vem das bases classistas e populares da sociedade. Para que as eleições de 2010 deixem de ser um evento apenas institucional, seria necessário entender a complexa relação dos movimentos sociais, das redes populares e classistas de auto-organização da sociedade brasileira com o governo Lula desde seu início. Se, nos primeiros anos, houve um forte choque de expectativas e mesmo conflitos, não chegou a haver uma cisão da base popular organizada do governo Lula. As rupturas foram muito minoritárias.
Ocorreu, em seguida, uma segunda fase de crescente interação do governo com as demandas dos movimentos sociais e, concomitantemente, um maior acionamento dos formatos de interação participativa, como as conferências nacionais e conselhos. Esse potencial de interação entre ação de governo/pressão dos movimentos sociais deve ir ao centro das eleições de 2010 com um programa de revolução democrática. É um programa de governo que, fundamentalmente, cria, efetiva e universaliza direitos cidadãos em uma escala histórica ampliada e, portanto, pode expressar demandas reprimidas dos movimentos sociais, inclusive e principalmente no sentido da democratização do Estado.
Um segundo fator que pode abrir espaço ao transformismo é a desagregação da base política de apoio ao governo Lula, seja um deslocamento do PCdoB/PSB para uma candidatura alternativa (em boa medida, o PDT vem se afastando desses movimentos), seja um deslocamento do PMDB para a candidatura oposicionista. O primeiro levaria a uma fratura do núcleo da coalizão que contribuiu para sustentar o governo Lula mesmo nos momentos de maior crise; o segundo poderia agregar um fator decisivo de nacionalização e peso institucional à candidatura da oposição.
A consolidação da coalizão que sustenta o governo Lula é uma construção de alta complexidade, que combina o plano nacional com projeções estaduais e regionais. A tendência da revolução democrática é ir fortalecendo o polo socialista e de centro-esquerda em uma dinâmica de conjunto que aparece como uma grande coalizão de esquerda-centro, isto é, de uma coalizão com clara e crescente tendência de esquerda que isola os neoliberais e os setores mais conservadores.
O Brasil está longe de ter um sistema partidário consolidado, e a revolução democrática tem o objetivo de reformá-lo para torná-lo mais expressivo e vinculado às demandas da maioria. A conquista da reforma política teria exatamente tal função. Enquanto não se acumula capacidade política para realizá-la, o que se pode fazer é ir forçando a correlação de forças favorável à esquerda e às forças progressistas.
Por fim, há uma dificuldade da passagem da liderança histórica de Lula a uma candidatura que se apresente legitimamente como herdeira de suas realizações e esperanças. Essa construção é de extrema complexidade, mas não é impossível ou improvável: a liderança histórica de Lula não é de tipo personalista, cesarista ou messiânica, como quer a oposição liberal; é tecida por mediações de partido, de coalizões, de movimentos sociais, de enraizamento institucional de governo. Lula é hoje uma multidão, certamente o maior líder político da história do povo brasileiro, e as eleições de 2010 vão pôr à prova a permanência ou a historicidade de sua condição. O carismático típico, por definição sociológica, fracassa no ato de sua sucessão, pois criou ao redor de si o vazio de sua excepcionalidade. Não é o caso de Lula.
A escolha, ao que tudo indica, de Dilma Rousseff para ser a candidatura apoiada pelo presidente não é arbitrária no sentido de que seu ministério foi ao centro desde o início do segundo mandato. Tem ainda o valor histórico inestimável de afirmar uma nova condição feminina, da geração de milhões de mulheres brasileiras que fizeram seu caminho próprio na vida, que souberam exercer sua inteligência, dignidade e talento contra preconceitos patriarcais seculares.
A candidatura Dilma, sozinha, não é ainda uma multidão, como é hoje a figura histórica de Lula. Mas tem todas as condições de ser portadora de um mandato de uma revolução democrática que universalize a condição cidadã dos brasileiros. A Dilma Rousseff falta hoje, com brilho próprio, toda a linguagem do sociodesenvolvimentismo que organiza a atual dinâmica do governo Lula. Para vencer em 2010, ela precisa, cada vez mais, falar a linguagem política democrática dos direitos e da cidadania ativa dos trabalhadores e do povo brasileiro.
*Juarez Guimarães é cientista político, professor na Universidad Federal de Minas Gerais.
(Publicado en Teoria e Debate, n°81, marzo-abril 2009)